Apenas foram precisos momentos de três dias e esta minha primeira leitura de 2020 voou num ápice. O tempo de espera entre comboios, autocarros e metro, onde às vezes quase que perdia a estação de saída. As manhãs e os fins de tarde. O suficiente para Murakami em “Sputnik, meu amor” me agarrar tão violentamente que me esmaga nas emoções turbulentas que as suas palavras deixam na sua passagem.
Apenas três personagens principais, Sumirem que aos 22 anos se apaixona pela primeira vez por Miú, uma mulher mais velha e misteriosa, e K., como se apelida o narrador, um jovem professor primário e que é apaixonado por Sumire. Assim, temos o nosso triângulo amoroso. Murakami não é assim tão convencional que possamos já prever o que irá acontecer. São todas personagens solitárias numa solidão que lhes é querida. Uma solidão constante nos livros deste autor.
Digamos, que também eu me apaixonei por estas personagens. Pela sua paixão. Pelo amor não correspondido. Pela solidão.
Quando tudo parece tão real, eis que surge o surreal na história. O outro lado, o eu estar aqui e estar ao mesmo tempo do outro lado. Vermos esse eu nesse outro lado. Metamorfoses. Tão estranho e fantástico. Mas ao mesmo o tempo, que nos deixa a pensar sobre o simbolismo desse outro lado.
Embora tenhamos direito a descrições fabulosas das ilhas gregas onde se passará uma parte da história, as descrições emocionais são tão mais fortes. Escrever almas e corações é tão profundo. E Sumire queria tanto ser escritora.
Quando nessa viagem com Miu, Sumire desaparece misteriosamente, com o desgosto no coração, a vida dos que ficam sofre uma profunda transformação. Mais para pensarmos nesta espécie de ensaio melancólico sobre desejo reprimido, perdas irreversíveis e o inevitável desperdício de vida. Um ensaio que não percebemos bem o seu desfecho. Em que tudo fica no ar. A imagem de marca de Murakami, essa de nos deixar em suspenso.
É equivalente a esse mesmo desaparecimento de Sumire, e ao fenómeno sentido por Miú catorze anos antes? Que mensagem Murakami nos deixa? A fragmentação da alma? A dualidade do ser? Tudo em aberto.
Pensamentos profundos sobre a vida, sobre a solidão, o amor e a nossa transformação constante. Palavras da mestria deste escritor. Um livro que talvez muitos o considerem estranho mas que nos deixa a vaguear de tão sublime que é. Murakami é aquele escritor que transforma banalidades em magia. E que nos leva em viagens tudo menos normais. Façam essa viagem com Murakami.
Termino com um excerto, que não resisto em partilhar e que muito me marcou:
“ O gelo é frio e as rosas são vermelhas. Estou apaixonada. E este amor vai decerto arrastar-me para longe. A corrente é demasiado forte, não tenho escolha possível. Mas já não posso voltar atrás. Só posso deixar-me ir com a maré. Mesmo que comece a arder, mesmo que desapareça para sempre."